Um homem vistoso, com um sobretudo preto adentra a sala. Os cabelos volumosos e muito bem penteados à base de gel. Sapatos, que de tão lustrados, brilhava como a uma lâmpada. A face completamente impassível, nenhuma expressão se via. Carregava, na mão esquerda, uma bolsa preta. Passou por todas as seções de cadeiras da sala, subiu uma pequena escada que ficava à direita, atravessou a sala e dirigiu-se para uma mesa afastada à esquerda, sem pronunciar uma palavra, sequer. Ouvia-a apenas o ruído arranhado do salto do sapato no piso. Todos os presentes o olhavam com uma curiosidade estridente.

O homem de preto se sentou, confortou-se na cadeira, e pôs a pasta sobre a mesa. Abriu-a e dela tirou alguns arquivos que continham muitas folhas de papel, o que se notava ser documentos.

Admiraram a sutileza do homem de preto que manuseava, por alguns instantes, os papéis, agora espalhados pela mesa. Um homem de meia idade, que se sentava ao meio da sala, tossiu propositalmente, e todos volveram a atenção a ele novamente.

- Voltemos nossa atenção ao caso, por favor!

O homem de meia idade exalava certa irritação no seu tom de voz. Aparentava, ainda de diminuta e quase imperceptível, ansiedade e raiva.

- Tereis de se concentrar, Senhores, - nisso o homem de meia idade olhou para sua esquerda -, na particularidade dos fatos que lhes foram apresentados. A cautela é a melhor forma de fazer justiça – fingiu um sorriso, ao que todos perceberam. Somos, nós agora, ao mesmo tempo os redentores e inquisitores.

Fez ele uma pausa no discurso, ao que se notou que tentava dar mais credibilidade às palavras. Ninguém notou.

- Tragam o acusado.

Disse o homem de meia idade. Logo um homem de farda adentrou a sala trazendo o acusado que aparentava cansaço e medo. Colocou-o em uma cadeira em frente ao homem de meia idade, que agora fazia uso de uma peruca de cor branca e cachos, uma beca, e uma maquilagem, que em sua maioria era pó de arroz.

O homem de meia idade consultou alguns papeis e os leu para o acusado que se mantinha, todo o tempo, olhando para o piso, como se dali esperasse algum buraco para se enterrar.

A porta da sala novamente se abre. Dessa vez um homem vestido em branco, com um sorriso bondoso no rosto, adentra. Os cabelos, que lhe cobria os ombros, tinham uma cor cinzenta. Dos olhos se via uma compaixão e um altruísmo, que de tão transparente fez com que todas as pessoas na sala sorrissem, com exceção do homem de preto que continuava impassível.

O homem de branco correu a sala, subiu as escadas à direita, pegou uma cadeira e sentou-se perto do acusado. Chamou-lhe a atenção e disse, quase no silêncio, algumas palavras que não puderam ser ouvidas por mais ninguém. O acusado continuou olhando para o piso, ainda que a expressão em seu rosto parecesse ter mudado.

Com um martelo de madeira, o homem de meia idade chamou a atenção a si novamente.

- Comecemos os trabalhos.

Ao acusado foi dado o direito de falar. Todos os presentes o ouviram atentamente. As palavras ecoavam por toda a sala, ao tempo em que era como que se ouvir várias pessoas falarem ao mesmo tempo. Algumas frases passavam desapercebidas, já que o eco atrapalhava a sonoridade das palavras. O timbre do acusado era sereno, mas falava com certa pressa. O homem de branco olhou-o nos olhos, colocou uma de suas mãos sobre um dos ombros do acusado, momento em que este começou a falar vagarosamente e acentuando cada passagem dos relatos que tinha em mente, atenuando as confusões produzidas pelos ecos.

O homem de preto ouvia atentamente ao acusado, enquanto escrevia numa folha que sobre a mesa.

Passaram-se trinta minutos, quando o homem de meia idade noticiou que o tempo do acusado havia terminado. O homem de meia idade determinou que o acusado se sentasse numa mesa à frente, e que o homem de branco o acompanhasse.

O homem de preto levantou-se, e dirigiu-se ao meio da sala. Carregava em sua mão esquerda alguns papeis com muitas anotações. Limpou a garganta com uma tosse seca e alta, analisou as anotações e começou a falar. Cumprimentou os presentes com falsa cortesia e andou até o lugar onde haviam sete pessoas sentadas.

- Podemos averiguar que o caso é de suicídio...

Falou estas palavras e olhou para cada pessoa procurando captar alguma emoção, mas nada viu. Continuou seu discurso dando ênfase nas circunstâncias da morte. O acusado não aparentava nenhum arrependimento, nenhuma emoção que demonstrasse remorso.

- O código é claro ao tratar do assunto... Ademais, o suicídio é punido da forma mais rigorosa, já que o ordenamento assim o prevê.

O discurso durou duas longas horas. O homem de preto procurou abusar da expressão suicídio durante todo o percurso, com intuito de chocar e firmar a morte, relatada no caso, como um pecado monstruoso, como um mal imperdoável que deve ser punido com o maior rigor possível. Fez comparações conduzindo o discurso a uma situação de catástrofe moral. Finalizou dizendo:

- O suicídio não comporta absolvição, pois combina as mais abomináveis situações criminosas, haja vista que matar é um pecado secular. Assim tendo o acusado participado de abominável prática, nada mais justo que seja condenado a mais severa pena.

As sete pessoas continuavam impassíveis. Ouviam atentamente cada argumento, mas não demonstravam nenhuma imparcialidade quanto a sua decisão.

O homem de meia idade esperou que o homem de preto se sentasse para dar seguimento aos trabalhos. Chamou o homem de branco à atenção e deu-lhe a oportunidade de se manifestar. O homem de branco se levantou, e sorriu. Percorreu a sala até o homem de meia idade o cumprimentou com muita humildade e cordialidade, assim como as demais pessoas. Dirigiu-se até as sete pessoas, os olhou simpaticamente e começou seu discurso.

- A vida, Senhores, nada mais é que um instrumento. A vida é um caminho... A morte é outro...

Fez um discurso simplório, dedicando cada palavra a importância da vida e da morte. Falou dos elementos que as compunham, assim como da liberdade de cada um de explorá-los.

- O suicídio é um dos meios pela qual se encontra a morte, nem por isso deixa de ser um caminho. O acusado participou do suicídio relatado, mas isso não importa dizer que os motivos dessa participação sejam intrinsecamente dele. As pessoas morrem por inúmeros motivos, e muitas vezes são as causas de suas próprias mortes. O suicídio é morte, não natural, quiçá acidental, que leva em conta muitos males, muitas aflições e muitas dores e enfermidades...

Continuou o discurso ponderando sobre a importância de se viver, embora considerando a existência de uma linha tênue entre a vida e morte, aonde muitos vão naturalmente e outros acidental ou violentamente. Asseverando que tudo é parte do processo a qual chamamos vida e morte.

- Há um chamado. Para alguns o chamado denominamos destino, para outros fatalidade. Contudo, a vida e morte andam juntas. E por mais injusto que o motivo da morte seja...

O discurso do homem de branco já se estendia por uma hora e cinqüenta e cinco minutos, quando o homem de branco parou, bebeu um gole de água, respirou fundo e continuou.
- O acusado realmente participou da morte... O acusado realmente participou da morte... O participou...

Respirou, o homem de branco, muito fundo e falou.

- O acusado se matou, mas não deve ser mandado ao inferno por isso. Ele morreu – falou com uma tristeza que era de se arrepiar -, Senhores, quando sua mulher e seus filhos morreram. As dores fizeram com o que o acusado perecesse. A importância da vida e da morte está no que sentimos e no que podemos ter. A morte do acusado, portanto, se deve ao amor por sua família, que ali estão sentados...

Só a voz do homem de branco pairava na sala. A atenção volvia-se toda a ele e a seu discurso triste e cheio de compaixão.

- Finalizo, dizendo que, ainda que ninguém tenha o direito de ceifar sua vida, a morte não deve ser punição. Tampouco uma pessoa deve ser separada da sua família, pois a morte é um novo caminho, independente do motivo ou dos meios pela qual ela tenha se dado. O acusado merece o paraíso, pois morreu por amor à sua família, assim como viveu.

O homem de branco finalizou o discurso, agradeceu a todos e sentou-se ao lado do acusado. O homem de meia idade determinou que os sete começassem a deliberar. As deliberações estenderam-se por menos de cinco minutos. Os sete voltaram, e um deles com um papel nas mãos. Abriu-o e fez a leitura.

- Os sete deliberam os seguintes votos: A morte é uma passagem, é a continuidade da alma. A vida é uma dádiva que deve ser respeitada, acima de tudo. O ato de ceifar a própria vida é abominável, e não há motivo que justifique tal ato.

O homem de preto deu um leve sorriso.

- Todavia, a morte é um caminho independente e tudo que acontece na vida não se comunica com o que acontece depois dela. Ainda que assim seja, a vida deve ser vivida e suportada com todas suas dificuldades. Portanto, os setes, por cinco votos a dois, deliberam pela condenação do acusado.

Ouviu-se, nesse momento, um coro de lagrimas. As pessoas que assistiam ao julgamento começaram a chorar em tão alto tom que era impossível se ouvir qualquer coisa dentro da sala. O homem de meia idade bateu o martelo chamando todos à atenção. Todos os sete se levantaram, e o leitor continuou em pé e com a folha nas mãos. O homem de branco consolava o acusado que caíra numa tristeza inimaginável. O homem de preto, por sua vez, tinha um sorriso de contente na face. O alvoroço foi atenuado pelo homem de meia idade, e quando ia falar os sete pediram a atenção.

- Nós como representantes da justiça condenamos o acusado...

Antes que o leitor dos setes falasse, o choro novamente invadiu a sala. O homem de branco interveio e pediu para que as pessoas tivessem calma, no mesmo instante em que o homem de meia idade batia furiosamente o martelo.

- No caso do acusado devera cumprir a pena no...

Ouviu-se um gemido fino e doloroso. A mulher do acusado se levantou.

- Se o meu marido for enviado ao inferno, peço que minha alma seja para lá enviada também, assim como de meus filhos. Não suportarei minha eternidade longe dele. E qualquer lugar junto a ele é suportável, ainda que seja o inferno.

O homem de preto exaltou-se. Antes de terminada a leitura da condenação pegou o acusado pela gola da camisa, criou uma fenda no chão da sala e começou a arrastá-lo para lá. A mulher do acusado abraçou seus filhos e caminhou para junto do marido. A mulher e os filhos abraçaram o acusado, que era arrastado pela sala.

- Ainda que o acusado tenha sido condenado – falou o leitor dos sete -, deliberamos que a pena não será a este aplicada, haja vista as circunstâncias do fato, ou seja, o amor com a qual viveu e morreu.

O homem de meia idade encerrou a sessão, e mandou que fosse cumprida a deliberação dos sete. Um alvoroço tomou conta da sala. Aquele bateu o martelo, chamando à atenção. O acusado ainda tremia pelo temor que passara.

- Inferno, disse, só existe durante a vida. A morte é um novo começo. E esse julgamento é uma condição para que as pessoas voltem e valorizem suas vidas. A vida é cheia de obstáculos, mas o retorno a ele é inevitável.

O homem de branco encostou a mão direita sobre a cabeça do acusado, no mesmo momento o acusado acordou. Estava deitado numa rua muito movimentada. As buzinas soavam alto, ouviam-se pessoas falando e reclamando do engarrafamento que se formava. O acusado estava deitado no chão, em plena noite, havia muitas pessoas em sua volta. Olhava para o céu escuro e limpo, enquanto pensava na vida que teria dali em diante, ouviu alguém dizer: esse ganhou a vida. E o acusado sorriu alegre, já fechando os olhos para acordar para a nova vida.

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